Flávio Dino, o ministro três em um

A menos que a Constituição tenha virado letra morta e não estejamos mais sob a égide do Estado Democrático de Direito, a falência do presidente Lula da Silva em preservar os biomas nacionais, ora esturricados por queimadas sobretudo criminosas, não autoriza o Supremo Tribunal Federal (STF) a preencher o vazio de governança deixado pelo chefe de Estado e de governo. Nem muito menos por meio de decisões tomadas por um só ministro – no caso, o novato Flávio Dino.

Ninguém livre de vieses político-ideológicos haverá de negar que Lula tem falhado miseravelmente em cumprir a promessa de devolver ao Brasil a liderança pelo exemplo em qualquer fórum de discussão de ações de preservação do meio ambiente e combate às mudanças no clima. Da mesma forma, é inegável que as queimadas impõem a ação urgente do Estado. Mas não será ao arrepio dos princípios democráticos e republicanos fundamentais que esse gravíssimo problema haverá de ser resolvido.

Ao que consta, a separação de Poderes ainda vige no País. Mas Dino, decerto imbuído daquelas boas intenções das quais o inferno está cheio, além de usurpar competências do presidente da República sem ser incomodado por seus pares no STF e, sobretudo, pelo usurpado, agora avança, pasme o leitor, sobre a prerrogativa do Congresso de propor emendas ao texto constitucional. E pior: por via indireta.

No fim da semana passada, Dino ordenou que fossem realizados “estudos” sobre a possibilidade de aplicação do artigo 243 da Constituição, que prevê as hipóteses para a expropriação de terras, aos casos de desmatamento ilegal provocado por incêndios dolosos, ou seja, intencionais.

Hoje, o referido dispositivo constitucional só autoriza a expropriação de propriedades rurais e urbanas para fins de reforma agrária e programas de habitação popular em dois casos: onde houver (i) culturas ilegais de plantas psicotrópicas e (ii) exploração de trabalho escravo. Mas isso parece pouco para o “senador togado”, para usar uma expressão de Carlos Andreazza, colunista deste jornal.

Vivêssemos tempos de normalidade democrática e institucional, seria ocioso lembrar que aos ministros do STF cabe exclusivamente fazer cumprir a Constituição tal como ela está escrita, e não encomendar eventuais alterações na Lei Maior a qualquer pretexto e por quaisquer meios.

Mas, quando já parece pacificado que a espera por autocontenção dos ministros da Suprema Corte já se desvela perda de tempo, é o caso de indagar: quem ou o que haverá de deter mais esse desabrido abuso de poder, algo que se tornou tão banal entre membros da mais alta instância do Poder Judiciário?

Tomado por laivos de executivo, o ministro Flávio Dino ainda determinou que o Palácio do Planalto, os partidos políticos e a Procuradoria-Geral da República (PGR), além de organizações da sociedade civil, se manifestem sobre sua “emenda” constitucional particular no prazo de 15 dias.

Para tristeza de todos os que ainda guardam algum respeito pelos princípios republicanos neste país, todas essas decisões do ministro Flávio Dino foram tomadas no âmbito de um “pacote de medidas” propostas por ele em audiências de “conciliação” que, a rigor, nem sequer deveriam ter sido realizadas.

Como já sublinhamos nesta página, Dino conduz essas audiências na condição de relator do voto vencedor em uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) que já foi julgada pelo plenário do STF no início deste ano e para a qual já há acórdão publicado.

Que nenhum outro ministro da Suprema Corte se abale a dizer palavra sobre esse descalabro é tão ou mais grave do que os arroubos expansionistas do sr. Dino. Não se pode condenar quem veja nisso uma espécie de compadrio no desrespeito à Constituição, em nome sabe-se lá de que, justamente entre os onze brasileiros que deveriam ser os seus mais aguerridos defensores.

A inoperância de Lula no combate às queimadas e na adaptação do País que ele governa às mudanças no clima não resolve um problema e ainda cria outro.

O fogo que consome os biomas e a reputação do Brasil na seara ambiental também chamusca o que ainda resta de institucionalidade no País.

Estadão

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